segunda-feira, 3 de maio de 2010

Comboio/Viagem: Parte Segunda

Reparei que havia sol. Banhava o telhado de xisto negro da estação, em conta suficiente para que sobrasse e me abraçasse também. Deitei as mãos à face, quente, e apercebi-me só naquele momento de que trazia uma barba de dias. Depois da aspereza do rosto, passei demoradamente os dedos pelo rebordo de um vaso de vidro que, ali perto, era grande demais para as flores que trazia. Ou talvez apenas se tivesse mantido demasiado gracioso enquanto o tempo lhe murchava a companhia. Delicado, frágil, transparente. Templo para mãos, as minhas, que há muito não tocavam, há muito não sentiam. Alguns passos e fui feliz, porque as malas de retalhos dividi-as por dois e pareceram-me mais leves. A mim, que da vida trazia tantas alças para partilhar. Soube que daquela estação seria capaz de viajar para capitais.

Hoje estou de partida e reparo que o relógio da estação, que estivera parado, fora acertado e corria agora para as primeiras horas de um novo dia. O céu, de negrume, pareceu-me mais encoberto do que quando cheguei e, ainda longe, uma luz e rodas riscando carris, riscando a noite. Com frio, aperto os primeiros botões do casaco e meto as mãos aos bolsos. Ainda perto, o meu vaso de vidro. Desejei que, depois de partir, chovesse. Talvez lhe trouxesse flores.

3 comentários:

  1. Há paragens que nos marcam, há paragens que nos guiam, há paragens que por o serem permitem do gatinhar o levantar, permitem gravar o passado e sonhar o futuro.

    ResponderEliminar
  2. "Alguns passos e fui feliz, porque as malas de retalhos dividi-as por dois e pareceram-me mais leves. A mim, que da vida trazia tantas alças para partilhar." - a minha parte favorita ;)

    ResponderEliminar
  3. desc estragar a profundidade:

    O Ruas é nosso amigo o Ruas é o nosso Poeta, vamos fazer com ele o que o bebé faz com a chupéta!!

    :D

    Seriamente: não sabia que escrevias assim ;) Gostei!

    ResponderEliminar